O apoio de sertanejos a Bolsonaro e de astros do pop e da MPB a Lula fez barulho nessa eleição. Mas o PT conseguiu, dias antes do primeiro turno, aliados inéditos em um estilo super popular e que relutava em se posicionar: o funk de São Paulo.
Lula fez encontros e tirou fotos com os maiores empresários do setor, Rodrigo GR6 e Kondzilla, e ganhou apoio desde Neguinho do Kaxeta, veterano do funk consciente, até Ryan SP, jovem fenômeno com versos de muito sucesso que passam longe da política.
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Conheça os bastidores deste apoio e saiba o que pode mudar, agora com Lula eleito, na relação entre o futuro governo e um estilo que cresceu à margem do poder público:
O apoio aconteceu por iniciativa do PT. Desde o início do período eleitoral a coordenação da campanha de Lula tentava fazer a ponte com as principais empresas.
Como o funk é alvo de preconceito e de tentativa de criminalização, houve receio no setor de se expor politicamente e sofrer represálias de adversários. Mas eles decidiram se posicionar.
O apoio era importante para o PT. O partido perdeu votos nas periferias em 2018. Em 2022, em especial na cidade de SP, houve uma virada expressiva e fundamental na vitória de Lula.
Com a perspectiva de uma interlocução inédita, o dono da GR6, maior produtora do setor, diz que o funk pode deixar de ser “invisível” na política e cita projetos para fomentar novos talentos pelo país.
Especialistas em políticas culturais citam benefícios para a indústria cultural e as comunidades. E lembram da política do ex-ministro Gilberto Gil no governo Lula como uma referência a ser resgatada.
O contexto: a bronca de Mano Brown
No dia 23 de outubro de 2018, em um comício do então candidato à presidência pelo PT, Fernando Haddad, o líder dos Racionais MC’s, Mano Brown, causou um climão histórico e criticou o partido em cima do palco.
“Tem uma multidão que precisa ser conquistada ou vamos cair no precipício. (…) Deixou de entender o povão já era. (…) tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta pra base e vai procurar entender”, disse o rapper na campanha passada.
“Mano Brown é um grande influenciador. Com certeza o PT escutou ele”, diz ao g1 Rodrigo Oliveira, dono da GR6. Os petistas têm relação com o rap de SP desde os anos 90. Mas hoje é o funk o estilo mais consumido pelo “povão” da cidade. “Esse foi o primeiro ano em que o PT procurou a gente”, diz Rodrigo.
“O concorrente (Bolsonaro) não procurou. Se tivesse procurado, a gente ia atender”, Rodrigo afirma. “Então a gente abriu as portas para o PT e entendeu a ideia deles. Espero que as pessoas olhem mais para o funk, para as comunidades e as periferias.”
O recado de grandes MCs
O MC Neguinho do Kaxeta, que tem mais de 20 anos de carreira e conheceu o funk de SP na pobreza e na riqueza, resumiu em um post em outubro: “O funk e eu não precisamos de políticos. Mas meu povo, que consome o funk, precisa de um bom governante, e o Lula conversa com a periferia”.
Também apoiaram Lula jovens ídolos do funk paulista como os MCs Dricka, Magal, Marks, Salvador da Rima e o influente Hariel, que defendeu o voto “para executar o plano de tirar o Bolsonaro do poder.”
A maior surpresa foi o funkeiro mais ouvido no Brasil atualmente, dono de músicas sobre festa, e que admite “não se envolver com questões políticas”. MC Ryan SP disse: “Se eu puder influenciar alguns milhões de votos a favor do Lula, minha família e a de milhões de pobres vão ter uma vida melhor”.
‘O pai tá estourado’
Não foi só em São Paulo que Lula tentou se reconectar com as periferias das grandes cidades. O comício dele no Complexo do Alemão, no Rio, mediado pelo líder comunitário Renê Silva, foi um dos atos mais marcantes da campanha de 2022.
A estética do PT se apropriou de símbolos das favelas, muitos criados no funk de São Paulo. Lula colocou óculos da marca Juliet, queridinha dos MCs, e usou slogans como “o pai tá estourado” – gíria do próprio Rodrigo GR6 e de Deolane Bezerra, viúva do MC Kevin, apoiadora de primeira hora de Lula.
Rodrigo diz que, na conversa com Lula no final de setembro, disse que não bastava usar os óculos sem vestir a camisa:
“Falei para eles que o funk não se resumia a uma Juliet. Esses moleques são grandes influenciadores. A palavra do Hariel numa comunidade pode ajudar muito. O funk é orgânico, verdadeiro, ajuda em segurança, educação, empregos. Só a GR6 gera quatro mil empregos, sem contar as casas de shows.”
“A gente vê os sertanejos se posicionando com Bolsonaro, e sabe que eles tiveram benfeitorias. O funk nunca tocou nessas festas de agropecuária, de prefeitura. Acredito que é porque a gente nunca furou essa bolha para verem que a gente existe. As pessoas tentam ocultar o funk”, ele compara.
Especialistas analisam ‘feat’
Se o funk de SP já chegou ao topo sozinho, pode haver alguma mudança com um poder federal em contato com o estilo? O que esperar dessa parceria – ou “feat”, na linguagem da música pop? A lembrança dos dois primeiros governos de Lula, entre 2003 e 2010, pode indicar o futuro.
“O ciclo comandado por Gilberto Gil e Juca Ferreira (ministros da Cultura de Lula) tentou estabelecer a oferta de condições estruturais nas periferias como um desenho de política pública”, lembra Miguel Jost, pesquisador de políticas públicas de cultura.
“Esse é um debate que está acontecendo: sobre a relevância dos territórios periféricos na cadeia da cultura. Ele precisa novamente ser feito para que a gente possa gerar um ciclo de prosperidade – e mais do que isso, de inovação, originalidade, e valorização das expressões culturais”, diz Miguel.
“Você tem um ganho em toda a região, não só no sentido econômico, mas de melhora na qualidade de vida, na produção de relações mais fortes de pertencimento social e fortalecimento das bases comunitárias”, ele conclui.
“Só pelos dados de consumo do funk já dá para imaginar o que gera na economia. Independentemente de se gostar de funk ou não, é uma manifestação pop, eletrônica e original do Brasil, e que tem um grande apelo internacional”, diz Dani Ribas, especialista em gestão e políticas culturais.
Dani Ribas também cita a gestão de Gilberto Gil como referência. “O Brasil exportou essa política com enorme êxito pela América Latina, o que eles chamam de cultura comunitária”, ela descreve. “Certamente a cultura é um dos eixos da transformação em um país menos desigual.”
“Há todo o mercado artístico, das produtoras, da distribuição, uma série de indústrias atreladas ao funk, muitos empregos. É uma comunidade ativa que elabora seus próprios sentidos”, ela afirma.
Ela conclui apontando o funk como fonte potencial de “soft power” (poder brando), termo que aponta a influência que um país exerce através do seus produtos culturais, como o cinema dos EUA.
“Não tenho dúvida de que o funk no exterior, na Europa, tem grande apelo. Gera fluxos de economia e também de ‘soft power'”, diz Dani Ribas.
Da redação, Tv Hortolândia com informações G1